Portal Portinari — Paz

Pequena visão daquilo que não é, mas poderia ser.

Ou apenas uma digressão sobre a nossa (trágica) sociedade entre pacífica e belicosa.

Lucas pinduca
6 min readMar 1, 2024

--

Entre 1952–1956, Candido Portinari (que era comunista) pintou para a ONU dois painéis:

  • “Guerra”, que se encontra na entrada da Assembleia Geral, inspirado na Bíblia, mais precisamente nos quatro cavaleiros do Apocalipse do Livro de mesmo nome. Tudo foi posto de lado em favor de uma visão simbólica onde Portinari não identifica guerra alguma, como se afirmasse que em essência todas se equivalem no desencadeamento de horror e animalidade. Nenhuma arma é identificada também; a cavalgada apocalíptica que corta a cena em todas as direções com seu cortejo de conquista, guerra, fome e morte, não traz as cores bíblicas do fogo e do sangue, nem o preto, o branco ou o amarelo.
  • “Paz”, que foi acondicionada na saída, e inspirado no poeta grego trágico, Ésquilo, parece declarar que no futuro a paz universal é possível. O dia virá em que a humanidade desfrutará a paz sem limites no espaço e no tempo; e todos os julgamentos das tragédias ou situações semelhantes irão terminar com a absolvição do réu, já que a misericórdia deverá sempre preceder a dureza. A bondade deve exaltar especificamente a importância da razão no desenvolvimento das leis e louvar os ideais de uma sociedade democrática. Em Paz, vê-se na comunhão da mestiçagem variada de nosso povo, uma nítida representação simbólica da fraternidade entre todos os homens, sua principal característica.

Assim, este trabalho do pintor brasileiro serviu de lembrete aos líderes do mundo do que está em jogo durante as assembleias, e qual o objetivo final que se buscava: transformar guerra em paz. O trabalho de Portinari caracteriza-se por manter a temática do homem brasileiro e suas questões sociais e históricas que o determinam, os seus valores que valem a pena eternizar de não-violência, de justiça social, de fraternidade entre povos, solidariedade, e de respeito pela vida.

Quanto ao dramaturgo Ésquilo, que era um otimista nato, prezando sempre pela vitória do bem sobre o mal, defendia que a presença do mal está no próprio homem, sem a interferência divina pregada pela Mitologia Grega. Não sendo um filósofo como Eurípides, e vivendo numa época em que sentia cada vez mais o desacordo entre a justiça ideal e as antigas lendas cheias da crueldade do destino e dos caprichos dos deuses, tentou interpretar com suas narrações a dialética entre os graus de conhecer, de ser e da verdade num sentido mais conforme com a justiça. Acredito que venha daí a inspiração para o painel.

Hoje, o trabalho (de Portinari) adquire um significado mais pungente ainda com o que estamos assistindo nesse mundo tão convulsionado, tão ameaçador, tão obscuro, onde vemos e vivemos agora a trágica visão de uma sociedade entre pacífica e belicosa, com todos os atuais conflitos e tragédias.

Em uma guerra sempre estamos diante da crise do Direito e das leis, da crise entre a prática do antigo Direito (fazer justiça com as próprias mãos) para um novo direito. É a transição da legalidade da physis, ou seja, daqueles valores baseados no processo e nas leis da natureza, onde o certo é o natural, o padrão a ser seguido, pois a natureza, numa primeira observação, ensina: tudo que contribui para a seleção do mais forte e a sobrevivência do mais apto, é certo e bom; e tudo o que dificulta é errado e mau; para a transigência do homus, a polis, cujos valores éticos favorecem escolhas e decisões voltadas para o homem como seu valor maior, para proteger os homens de algo exterior a eles.

O pensamento dos gregos também traz uma crença na qual, a paz é essencial para manter a ordem social e evitar conflitos internos. Por isso, as tragédias gregas costumam ter um final feliz, onde os personagens se reconciliavam e encontravam um meio termo para resolver seus conflitos. A tragédia, além de ser uma arte política, era também uma arte retórica. Ao contrário da Poética, de Aristóteles, que afirma que algo é o que é, a tragédia trabalha com o verossímil, o que não é, mas poderia ser. Por isso, a narrativa dos painéis Guerra e Paz está mais atual do que nunca quase setenta anos depois.

É claro que a luta do ser humano contra a entropia é a grande força motriz dessa criatividade, fazemos arte para fazer sentido com nossa mortalidade, para neutralizar sua brutalidade com a beleza. Queremos ser relevantes e deixar um legado correspondente. Todo ato criativo é um ato de consolo para nosso desespero com nossa transitoriedade. Um século depois de Albert Camus insistir que “não há amor à vida sem desespero da vida”, Mark Doty contempla essa equivalência fundamental da existência:

O desespero, penso eu, é fruto de uma recusa em aceitar nossa situação mortal.

Contudo, os painéis de Portinari também acabam por enunciar, metaforicamente, como podemos reescrever a realidade e por esse prisma, toda metáfora é um erro calculado, um desvio. Pois se a realidade ficar refém da criatividade do autor, podendo ser recortada e colocada segundo um determinado viés, a maldade ou a bondade podem ser minimizados ou maximizados mediante o tipo de comportamento que se deseja gerar. O Surrealismo, o Modernismo e o Dadaísmo são alguns exemplos claros dessa premissa. Neste encontro da narrativa com o público, penso em quais interpretações serão geradas nas pessoas ao observarem os painéis de Portinari…

Sabemos pelo arcabouço judaico-cristão que na cultura ocidental o castigo final dos crimes (por mais horríveis que sejam) é um poder que não compete aos homens, para tanto os cavaleiros do apocalipse são encarregados do castigo dos criminosos e pecadores, perseguindo-os incansavelmente, pois seu campo de ação não tem limites. São implacáveis e não se deixam abrandar por sacrifícios nem suplícios de nenhum tipo. Não levam em conta atenuantes e castigam toda ofensa contra a sociedade e a natureza, correndo atrás dos infratores dos preceitos morais.

Na Antiguidade grega relatada por Ésquilo na sua tragédia As Eumênides (também conhecidas como Erínias), eram estes seres, representados normalmente como mulheres aladas de aspecto terrível, com olhos que escorrem sangue no lugar de lágrimas e madeixas trançadas de serpentes, que cumpriam a mesma função dos cavaleiros apocalípticos.

Conforme esta tradição grega, existia na Arcádia um lugar em que se encontram dois santuários consagrados às Erínias. Nestes lugares, segundo a lenda, são elas que perseguem a Orestes pela primeira vez, vestidas de negro. Perto dali, e segundo conta Pausânias, existia outro santuário onde o seu culto associava-se ao das Graças, deusas do perdão. Neste santuário purificaram a Orestes, vestidas completamente de branco. Orestes, uma vez curado e perdoado, faz um sacrifício expiatório no santuário às Erínias.

Ora, um sacrifício vicário, ou sacrifício expiatório é algo muito conhecido pelos estudiosos da teologia cristã como sendo o sacrifício de Jesus Cristo na cruz pelo pecado do homem. Segundo o Dicionário Bíblico Universal, era a expiação do pecado por meio de uma vida dada em substituição a outra. E segundo o dicionário Michaelis, também conhecido pelo termo “propiciação” (latim propitiatione), que pode ser compreendida como a “intercessão para obter o perdão de culpa”, bem como o “sacrifício para aplacar a ira ou a justiça divina”. O Novo Testamento se refere a morte de Cristo Jesus como ele tendo sido a vítima da expiação dos erros de todo mundo:

Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus. (Rm 3:24,25)

O Apóstolo Paulo expressa também que haveria “propiciação pela fé no seu sangue” [de Jesus], e que gratuitamente haveria “remissão de pecados”. Porém, temos observado que a humanidade tem se isentado de suas responsabilidades “Orestianas”: buscar a purificação e o perdão do criador, oferecendo o seu melhor sacrifício (seja para aplacar as Erínias ou os cavaleiros do apocalipse), minimizando a fome, a guerra e as doenças pelo mundo todo. O que está bem esclarecido no entanto, é a responsabilidade que somente o ser humano tem pelas suas guerras e suas mazelas, todas produzidas pelo egoísmo e ganância de uma natureza humana autocentrada e afastada dos antigos ideais gregos e judaico-cristãos de paz e prosperidade.

Não quero ser repetitivo, mas O Cristo disse há muito tempo que o homem não pode melhorar sem segui-lo, sem praticar seus ensinamentos; e enquanto não houver boa vontade em substituir a vida do outro pela minha, ainda que figurativamente, atitudes belicosas sempre serão uma possibilidade viável, logo, é importante aprender a amar os outros. Atitude que deve começar com o aprender a amar a nós mesmos, um sentimento que o cínico moderno reativo pode descartar como um enchimento vago dos livros de autoajuda, mas que a reflexão mais ponderada revela ser profundamente verdadeiro e profundamente desconfortável. O que me faz citar o Camus novamente, encerrando este texto:

O homem não é nada em si mesmo. Não passa de uma probabilidade infinita. Mas ele é o responsável infinito dessa probabilidade. — A. Camus

--

--

Lucas pinduca

Part cultural voyeur mixed with a splash of aspiring behavioral scientist & wannabe motivational writer. https://linktr.ee/lucaspinduca - ko-fi.com/lucaspinduca